quarta-feira, janeiro 16

chuva e cachoeira


O computador desconectou da tomada enquanto eu estava lendo um texto ao acaso sobre o choro. Estava bem no meio da leitura, apenas com olhos de quem ouve. E quando a tela apagou, me dei conta que não me lembro a última vez que chorei. Eu consigo lembrar a última coisa que me emocionou, que me deixou triste, que me deixou em êxtase, que me decepcionou, que me fez sentir medo. Mas nada conseguiu me envolver ao ponto de transbordar de mim. Nos últimos dois meses me sinto afogada porque não sei mais escorrer. Minha garganta é gruta de água cristalina – sons ecoam dentro dela. Em uma viagem há alguns anos, um nativo me contou que quando chovia era só alegria, pois só assim era possível contemplar as cachoeiras n’aquele local. Foi um dia de chuva intensa. Não dava pra sair de bugue pela cidade e muito menos a pé. No dia seguinte um sol que jurou de pés juntos que por ali nenhuma chuva jamais passou. Fomos ao encontro das cachoeiras. Não entendi muito bem como fluía tudo aquilo, era imenso, forte e intenso o que corria - fiquei extremamente encantada e logo pus-me a ficar embaixo das águas. Nesse lapso de trinta segundos onde o computador desligou, esse episódio me veio à mente. Como quem entendeu a importância da chuva. Chover pra ver queda d’agua. Chorar para ser queda-livre. Bendito ciclo que transforma.  

Eu choro. Eu choro tanto que às vezes sinto que meu peito vai se dilacerar. Eu choro dentro de mim. Eu choro toda vez que sinto que sou insuficiente, que sou fraca, que não vou conseguir. Quando eu estudo eu penso que sou insuficiente, que sou fraca, que não vou conseguir. Quando eu trabalho eu penso que sou insuficiente, que sou fraca, que não vou conseguir. Quando penso nos meus amigos – eu paro um pouco – tenho a convicção de que sou insuficiente, que sou fraca, que não vou conseguir. Que prefiro desatar laços que nunca existiram porque acho que não tenho pulso para me dedicar. Penso assim nos estudos. Penso assim no trabalho. Eu choro toda vez que deito a cabeça no travesseiro e não consigo dormir – noite após noite. Comecei tomando um comprimido de melatonina, depois dois, depois três e sei que nenhum é suficiente – porque esse não é remédio para cessar choro. Todo santo dia chega um momento em que eu consigo boiar dentro de mim. Quando me dou conta, em poucos instantes já amanheceu. Todo dia santo reforço o pedido pra reparar os danos dessa enchente.

Eu corro. Eu corro e quando me dou conta estou pensando em todas as coisas que vou dizer quando estiver na linha de chegada. Eu quero agradecer pessoas especiais, dizer que em outros tempos eu diria que foi sorte, mas esse foi um sonho que lutei para conquistar e que eu mereço isso que está acontecendo em minha vida. Quando eu penso no meu termo de posse eu me imagino dizendo que em outros tempos eu diria que foi sorte, mas esse foi um sonho que lutei para conquistar e que eu mereço isso que está acontecendo em minha vida. Quando eu penso em um grande amor eu penso que em outros tempos eu diria que foi sorte, mas esse foi um sonho que lutei para conquistar e que eu mereço isso que está acontecendo em minha vida. Esse é um pensamento que me acompanha em poucos quilômetros durante a minha rotina. Porque a corrida chega ao fim e eu percebo que transpirei tão pouco. Não foi o suficiente. Ainda estou me afogando – socorro.

Eu chego em casa e primeiramente tomo pego meu celular, e como quem espera algo, olho as redes socias – que já são poucas porque desativei. É melhor se desconectar do que não se está pronto para enlaçar. Apenas consumo conteúdo digital. Afeto digital fica cada vez mais distante. No WhatsApp já não chegam mensagens perguntando como foi o meu dia ou se preciso de boias. Ninguém sabe mais de mim. Ninguém sabe o quanto corro, o quanto estudo, o quanto luto, o quanto choro. Não os culpo. É impossível dar um laço em um sapato que não está aos nossos pés. Os meus pés estão distantes e calejados. Segundamente, eu coloco alguma música. Essa foi a época em que mais converso com a música. Ela também não sabe nada de mim e mesmo assim me torno sua melhor ouvinte. Atenta as descobertas que no fim das contas fazem com que eu entenda um pouco mais sobre mim. Terceiramente, eu vou para o chuveiro. Lá eu me olho no espelho e me vejo cada vez menos. Meus olhos presos e encharcados em um corpo socialmente construído para a satisfação alheia. Cabelos alisado, descolorido, a busca incessante por uma magreza e o mais importante – pura insatisfação. Comecei cortando algumas pontas dos cabelos. Tomei coragem e cortei mais da metade do cabelo. No caminho do salão para minha casa fui a pé e senti o vento dançando nos meus cabelos – achei engraçado. A reação social eu senti na pele. Fomos projetados para fazer alguém feliz em alguma parte do mundo. Deixei que meu termômetro de beleza fosse uma rede social. Perdi metade das minhas curtidas e comentários. Descobri que só ficou bonito porque meu cabelo é pouco chateado, que muitas pessoas não teriam coragem, que meu cabelo era lindo antes. E cada vez eu me olhava, me sentia mais simples e mais eu. Era totalmente contraditório com o que o mundo me dizia. E quem está errado? Eu, lógico. Senti que eu era insuficiente, fraca e que nunca iria conseguir.  Um simples corte de cabelo me fez chorar e me afogar um pouco mais.

Tem dias que eu só quero chegar ao outro lado do continente. O problema é que eu nado, nado, nado e não saio de mim. Não tem como chegar a lugar nenhum quando o mar é dentro de si. Fora de mim eu não sei nadar. Preciso de barco e vela para navegar. E embora eu também seja mar, eu descobri que posso me afogar na imensidão. A ansiedade é a minha imensidão. Em uma palavra cabem tantas projeções de destino que me deixam estagnada, sentindo com a força da imensidão que eu sou insuficiente, que sou fraca e que não vou conseguir. Um substantivo consegue congestionar todas as minhas vias, minha nascente e minha foz.  Um substantivo tem ação em minha vida. Um sentimento é capaz de me obrigar a ler todos os dias bons motivos para seguir e não desistir. Eu não esperava escrever esse texto, eu não sabia nem que eu pensava isso. A única coisa que sei é que a linha é tênue entre a chuva e a cachoeira.

quarta-feira, janeiro 9

chá de coragem

entender o momento
de ancoragem
é achar coragem
na brevidade
que o tempo
se liquefaz


quarta-feira, janeiro 2

fragmentos sobre o tempo I

quanto tempo
cabe
no que já é
tarde?

terça-feira, janeiro 1

velho novo tempo

Faltavam 45 minutos para às 00h. Eu parei diante da porta e vi um fim de domingo, a tv estava ligada e todas  as luzes apagadas, o silencio era morada naquela casa. Ela olhava fixamente para a tv como se estivesse interessada em um filme de faroeste. Como se aquilo fosse algo que poderia acrescentar a essa altura da vida. Entrei e antes mesmo de apertar o interruptor uma luz acendeu e tinha tantas cores, tanto calor, tanto sentimento. Um sorriso veio em seguida dizendo "vocês chegaram!". As promessas de cheganças são rotineiras na vida de alguém que só espera - que não pode fazer nada além de esperar - a hora, um momento, uma conversa. De repente, o fim de domingo rapidamente se transformou em uma segunda-feira, véspera de dois mil e dezenove. As luzes da casa foram acesas e ouvi a primeira frase "o que eu quero é viver, minha filha" e, em seguida, todas as histórias que sempre ouvi. Só que dessa vez com um olhar diferente. Enquanto ela me falava, eu só pensava na fragilidade que o tempo traz. Vivemos na certeza que seremos fortes e maduros graças as experiencias que o tempo nos dá. Mas no fim das contas, o tempo nos trapaceia e quanto mais ele corre, mais nós perdemos as pernas. Tem coisa que impressiona, seja aos vinte e quatro ou aos noventa e seis anos, os encontros sempre são especiais. Mesmo sabendo o quão tênue é nosso reencontro, quando eu a vejo eu lembro do quanto a amo. Eu preciso ver para lembrar que sinto amor imenso. Sei que não deveria ser assim. E para minha sorte, tenho solução para meu problema: preciso encontrar mais, abraçar mais, viver mais e sem nenhuma hesitação - ouvir mais as histórias de como ela foi uma mulher muito a frente do seu tempo. Como em pleno 1925 enfrentou a tudo e a todos para ter seu direito de ser live. A independência sempre esteve atrelada a uma face de minha avó, e ninguém além dela sabe como é difícil aprender a se deixar cuidar. Esse é um abismo que enfrenta todos os dias e quando conta suas histórias se esquece por alguns minutos - onde só existe aquela Maria do Monte. A que andava de transporte livremente e tinha seu emprego em uma sociedade que as mulheres se quer trabalhavam. Que viajava dias em cima de um cavalo. Que teve seis filhos e investiu na educação de todos. Que adora a casa cheia de noras, netos e amigos.

Na véspera de dois mil e dezenove foi diferente - e ela sentiu isso. A casa não estava cheia. Não havia filhos, nem noras, nem netos. Não havia uma mesa farta e champanhe para embalar a festa. A primeira vez em vinte e quatro anos para mim. E para ela, talvez a primeira vez em mais de cinquenta anos. É cruel, mas o tempo tem a mania de apagar a gente. Nesse dia, ela lembrou até do memorável marido, que detestava todo tipo de festa. Embora todo ano houvesse confusão de ele pedir pra a comemoração acabar cedo, desligar o som deixando todo mundo emburrado, esse ano não teve se quer isso. E fez falta. Todo mundo fez falta pra ela. Quem gostava de festa e quem não gostava. Porque não foi ninguém para a festa que não teve. Todo mundo resolveu ficar com suas famílias na virada do ano. Mas esqueceram que ela também era família. 

Cinco para meia noite - literalmente. Chegou música, bebidas e um bolo lindo com enfeite de dois mil e dezenove. A festa iria começar. Que susto que tivemos. Eu e ela. O que tinha sido quarenta minutos intensos pensando em como o tempo nos massacra facilmente foi esquecido. Embora todo detalhe a deixe magoada, toda felicidade que recebe é, incrivelmente, potencializada. E aquela felicidade de ver os filhos chegando, a champanhe estourando, todo mundo se abraçando a fez esquecer de toda dor do abandono e só viver o aqui e o agora. Não é que o depois pode não chegar, é porque ele com certeza não vai chegar. 

O tempo escorre e ressignifica detalhes da vida. 
O que você acredita que era, já não é mais.

[Feliz 2019]

pulso no tempo

próximo dos olhos 
mas não se vê
passa correndo
parece o vento 

perde-se tempo 
na procura
de encontrar
o tempo

a gente não repara
mas ele não pára
e eu fico aqui
estagnada